30 de mar. de 2012

Diabretes


–  Ei! É minha vez! – gritou Germano.
–  Espera aí, já vou descer! – retrucou César.
Todo fim de tarde, César, Germano, Marcos e eu subíamos na árvore do terreno que dava para o quintal da minha avó para espiar. Queríamos descobrir o segredo do seu Evaristo.

Tudo começou num futebolzinho inocente. César chutou uma bola que foi parar em cima da árvore. Marcos, o mais alto, subiu para pegá-la e a janela do vizinho estava aberta. Ele viu seu Evaristo em pé, conversando com alguém.
Isso não seria nada de mais, não fosse o fato do “velho Evaristo”, como o chamávamos, não deixar ninguém entrar na sua casa. Ninguém. Morava lá havia dez anos e nunca se viu uma alma sequer por ali. Ele era meio assustador: mal-encarado, olhos esbugalhados, testa franzida com rugas profundas, barba sempre por fazer e um barrigão preso por dois suspensórios do tempo dos filmes mudos que passam na tevê a cabo do meu avô.
Marcos ficou espionando do galho alto da árvore. A cortina na janela do cômodo estava entreaberta, mas não o suficiente para se identificar o interlocutor do nosso misterioso vizinho.
 Minutos depois, seu Evaristo o viu lá pendurado e nos descobriu ao redor da árvore. Ele correu a fechar a janela, gritando:
 – Parem de xeretar a minha vida, seus diabretes!
Marcos desceu às pressas e ficamos um tempo sem aparecer para seu Evaristo esquecer o assunto. Mas depois de uma semana voltamos a espiar. E ele sempre estava lá, no cômodo de cima, conversando com alguém. Nunca ouvimos nenhuma voz a não ser a dele.
 Descobrimos que ao pé da janela havia uma poltrona, onde devia se sentar a pessoa com quem ele conversava. Mas só víamos o encosto, pois o assento ficava contra a parede.
Imaginávamos tudo e ficávamos discutindo: Será a mãe dele? Presa a uma cadeira? Não, ela teria mais de cem anos! Mas tem gente que vive tudo isso... Talvez a mulher dele. Ela pode ser muda. Mas nunca ninguém soube que ele era casado. E se ele tiver um filho? Um filho que nunca sai? Nem toma sol? Será um deficiente? Não, não deve ser. Ele teria que levá-lo ao médico... Alguma hora alguém ia ver. Ele pode sair escondido, tarde da noite, carregando alguém... Não, ninguém sai de madrugada para ir ao médico. Ele pode manter alguém prisioneiro... Por isso não quer xeretas espionando. Mas meus avós disseram que ele se mudou sozinho...
Descobrir aquele mistério passou a ser uma questão de honra para nós.
O velho Evaristo nos pegou em flagrante mais umas duas vezes. Sempre gritava e nos chamava de diabretes, mas nunca falou com a minha avó ou com as mães dos meus amigos.
Ele não quer chamar atenção... É porque deve estar fazendo algo errado...
Os dias passavam e não conseguíamos descobrir nada. Até que naquela tarde eu subi na frente. A cortina da janela estava aberta pela primeira vez. Pude olhar lá dentro e vi um corpo caído no chão, de bruços. Só podia ser ele: dava para ver as pernas e uma parte do suspensório.
– Meus Deus! Vocês não vão  acreditar!
–  O que foi? – perguntou  Marcos.
Eu estava paralizado.
– Fala logo Pedro! – disse o coro.
– Acho que o velho Evaristo morreu.
Todos quiseram subir e olhar, mas eu disse:
– Não vamos perder tempo aqui. Precisamos entrar na casa e ver o que aconteceu.
– Entrar na casa? Você está doido! E se ele foi assassinado? – disse César.
– Pelo assassino da poltrona! – completou  Germano.
– Vai ver é alguém que o velho deixou todos esses anos em cárcere privado! E o assassino ainda pode estar lá! – profetizou Marcos.
– O que é cárcere privado?  – perguntou  Germano.
– Estamos perdendo tempo. Vamos entrar – eu disse, determinado, descendo da árvore.
– Se o assassino estiver lá, corremos e gritamos bem alto! – disse César.
– E se a policia achar o velho morto e pensar que fomos nós? –  perguntou Germano.
– Ninguém vai achar que moleques de sete e oito anos mataram alguém – eu disse.
– Oito não, eu já tenho nove – disse Marcos.
Estávamos apavorados de medo, mas a curiosidade era maior.
Cruzamos a cerca e procuramos a porta dos fundos. Estava aberta. Passamos pela cozinha e subimos a escada, sem fazer barulho e olhando para todos os lados. Logo avistamos o cômodo com o seu Evaristo caído ao chão. Não havia mais ninguém lá.
Eu me abaixei e senti o pulso.
– Está vivo! Chamem a ambulância!
Marcos desceu e procurou o telefone. Germano me ajudou a virar o velho homem e afrouxar o cinto da calça. Eu tinha visto isso nos filmes. Ele respirava lentamente, com dificuldade.
Foi aí que vi o César, imóvel, de frente para a poltrona. Parecia ter visto um fantasma! Ele tinha acabado de descobrir o interlocutor do seu Evaristo.
Para nossa surpresa não era ninguém!
Era um manequim. Uma moça bem vestida, com peruca castanho clara.
– Era com ela que ele falava esse tempo todo? – perguntou César.
– Ele deve ser doido – disse Germano.
– Ou sentir muita saudade – eu disse, segurando um porta-retrato com a foto de uma moça muito parecida com o manequim.
Marcos voltou ao quarto e avisou que a ambulância estava vindo.
– Onde achou isso? – ele me perguntou.
– Na mesinha daquele canto. Deve ter sido a mulher dele. E este aqui deve ser ele, trinta anos mais jovem.
– Esse manequim é igualzinho à moça da foto! – disse Marcos, ao reparar na nossa descoberta.
– Ele ainda está vivo? – perguntou César.
– Está, mas não sei por quanto tempo.
– O que vamos fazer? – quis saber Germano.
– Se ele parar de respirar eu faço respiração boca-a-boca e você aperta o peito dele – eu disse, com convicção. – Já vi isso nos filmes.
– Não, o que vamos fazer com o manequim.
– Acha que devemos tirar “a moça” daqui? – perguntei. 
Marcos respondeu, logo:
– Se ela ficar aí, o pessoal da ambulância vai estranhar. Vão pensar que ele é louco. E ele pode ir para um hospício!
– Mas ele é louco! Ele fala com manequins! – disse César.
– Mas é um louco inofensivo. E deve se sentir muito sozinho – eu concluí.Se ele sair dessa, não vai querer viver num hospício sem ela... O manequim deve ser tudo o que ele tem.
Os meninos perceberam a questão.
– Vamos esconder a moça no armário – disse Germano, decidido.
Conseguimos espremer o manequim dentro do roupeiro do quarto, tirando as pernas. Quando fechamos a porta, ouvimos a sirene da ambulância. Eu desci e fui chamar a minha avó. Contamos uma história mais ou menos verdadeira: que a bola havia caído na árvore, eu fui pegar e vi seu Evaristo pela janela, deitado no chão.
Minha avó acreditou e o pessoal da ambulância também. O médico disse que ele teve um derrame, mas tinha chances de sobreviver.
Depois de uma semana seu Evaristo voltou para casa. Estávamos em pânico. É claro que ele ia descobrir o manequim no armário, sem as pernas. Será que ia pensar que foi molecagem dos diabretes? E se ele decidisse contar para minha avó ou para as outras mães, que espiávamos a casa dele? No mínimo, íamos ficar de castigo por um mês!
Naquele dia nem aparecemos no quintal.
Minha avó viu as janelas do seu Evaristo abertas e quis levar uma torta para ele.
– Vamos até lá, comigo. Ele vai gostar de saber que vocês ajudaram a salvá-lo –  ela disse.
 – Mas você nem fala com ele!
Eu estava apavorado. Tentei sair fora, mas minha avó insistiu:
– Ele é reservado, mas nestas circunstâncias vai nos receber. O que fizeram foi muito bonito. Ele podia estar morto se vocês não tivessem entrado na casa e chamado o socorro.
Não tive saída.
Minha avó tocou a campainha e eu fiquei ao lado dela, segurando a torta, com as pernas bambas.
Seu Evaristo nos recebeu e nos mandou sentar. Agradeceu a torta e ouviu minha avó, orgulhosa, contar toda a história de como evitamos que ele morresse.
Ele olhava para mim de vez em quando, enquanto minha avó falava. Concordou com ela – que tínhamos sido espertos – e se disse muito grato.
– Quando eu estiver um pouco mais forte, quero agradecer a todos os garotos – ele falou, olhando para mim.
Eu interpretei a frase como uma ironia. “Agradecer” a todos os garotos... Devia estar odiando os diabretes! Por termos descoberto o manequim – algo que ele queria tanto esconder – e por arrancarmos as pernas dele e o enfiado no armário.
Ele ofereceu café, mas minha avó achou que ele devia descansar. E se precisasse de algo era só chamar. Ao sairmos, ele pôs a mão firme no meu ombro e eu gelei. Ele se abaixou e sussurrou no meu ouvido:
               – Obrigado por manter meu segredo – e piscou.
               Nesse dia da minha infância descobri que as aparências enganam...

Um comentário:

Pera disse...

Ótimo! Sensível,lírico e redigido com mestria!

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