– Ei! É minha vez! – gritou Germano.
– Espera aí, já vou descer! – retrucou César.
Todo fim de tarde, César,
Germano, Marcos e eu subíamos na árvore do terreno que dava para o quintal da minha avó para espiar. Queríamos
descobrir o segredo do seu Evaristo.
Tudo começou num
futebolzinho inocente. César chutou uma bola que foi parar em cima da árvore.
Marcos, o mais alto, subiu para pegá-la e a janela do vizinho estava aberta.
Ele viu seu Evaristo em pé, conversando com alguém.
Isso não seria nada
de mais, não fosse o fato do “velho Evaristo”, como o chamávamos, não deixar
ninguém entrar na sua casa. Ninguém. Morava lá havia dez anos e nunca se viu uma
alma sequer por ali. Ele era meio assustador: mal-encarado, olhos esbugalhados,
testa franzida com rugas profundas, barba sempre por fazer e um barrigão preso
por dois suspensórios do tempo dos filmes mudos que passam na tevê a cabo do
meu avô.
Marcos ficou
espionando do galho alto da árvore. A cortina na janela do cômodo estava
entreaberta, mas não o suficiente para se identificar o interlocutor do nosso
misterioso vizinho.
Minutos depois, seu Evaristo o viu lá
pendurado e nos descobriu ao redor da árvore. Ele correu a fechar a janela, gritando:
– Parem de xeretar a minha vida, seus
diabretes!
Marcos desceu às
pressas e ficamos um tempo sem aparecer para seu Evaristo esquecer o assunto.
Mas depois de uma semana voltamos a espiar. E ele sempre estava lá, no cômodo de
cima, conversando com alguém. Nunca ouvimos nenhuma voz a não ser a dele.
Descobrimos que ao pé da janela havia uma poltrona,
onde devia se sentar a pessoa com quem ele conversava. Mas só víamos o encosto,
pois o assento ficava contra a parede.
Imaginávamos tudo e
ficávamos discutindo: Será a mãe dele? Presa a uma cadeira? Não, ela
teria mais de cem anos! Mas tem gente que vive tudo isso... Talvez a mulher
dele. Ela pode ser muda. Mas nunca ninguém soube que ele era casado. E se ele tiver um filho? Um filho
que nunca sai? Nem toma sol? Será um deficiente? Não, não deve ser. Ele teria
que levá-lo ao médico... Alguma hora alguém ia ver. Ele pode sair escondido,
tarde da noite, carregando alguém... Não, ninguém sai de madrugada para ir ao
médico. Ele pode manter alguém prisioneiro... Por isso não quer xeretas
espionando. Mas meus avós disseram que ele se mudou sozinho...
Descobrir aquele
mistério passou a ser uma questão de honra para nós.
O velho Evaristo
nos pegou em flagrante mais umas duas vezes. Sempre gritava e nos chamava de
diabretes, mas nunca falou com a minha avó ou com as mães dos meus amigos.
Ele não quer chamar atenção... É porque deve estar fazendo algo
errado...
Os dias passavam e
não conseguíamos descobrir nada. Até que naquela tarde eu subi na frente. A
cortina da janela estava aberta pela primeira vez. Pude olhar lá dentro e vi um
corpo caído no chão, de bruços. Só podia ser ele: dava para ver as pernas e uma
parte do suspensório.
– Meus Deus! Vocês
não vão acreditar!
– O que foi? – perguntou Marcos.
Eu estava
paralizado.
– Fala logo Pedro!
– disse o coro.
– Acho que o velho
Evaristo morreu.
Todos quiseram
subir e olhar, mas eu disse:
– Não vamos perder
tempo aqui. Precisamos entrar na casa e ver o que aconteceu.
– Entrar na casa?
Você está doido! E se ele foi assassinado? – disse César.
– Pelo assassino da
poltrona! – completou Germano.
– Vai ver é alguém
que o velho deixou todos esses anos em cárcere privado! E o assassino ainda
pode estar lá! – profetizou Marcos.
– O que é cárcere
privado? – perguntou Germano.
– Estamos perdendo
tempo. Vamos entrar – eu disse, determinado, descendo da árvore.
– Se o assassino estiver
lá, corremos e gritamos bem alto! – disse César.
– E se a policia
achar o velho morto e pensar que fomos nós? – perguntou Germano.
– Ninguém vai achar
que moleques de sete e oito anos mataram alguém – eu disse.
– Oito não, eu já
tenho nove – disse Marcos.
Estávamos
apavorados de medo, mas a curiosidade era maior.
Cruzamos a cerca e
procuramos a porta dos fundos. Estava aberta. Passamos pela cozinha e subimos a
escada, sem fazer barulho e olhando para todos os lados. Logo avistamos o
cômodo com o seu Evaristo caído ao chão. Não havia mais ninguém lá.
Eu me abaixei e senti
o pulso.
– Está vivo! Chamem
a ambulância!
Marcos desceu e
procurou o telefone. Germano me ajudou a virar o velho homem e afrouxar o cinto
da calça. Eu tinha visto isso nos filmes. Ele respirava lentamente, com
dificuldade.
Foi aí que vi o
César, imóvel, de frente para a poltrona. Parecia ter visto um fantasma! Ele
tinha acabado de descobrir o interlocutor do seu Evaristo.
Para nossa surpresa
não era ninguém!
Era um manequim. Uma
moça bem vestida, com peruca castanho clara.
– Era com ela que
ele falava esse tempo todo? – perguntou César.
– Ele deve ser
doido – disse Germano.
– Ou sentir muita
saudade – eu disse, segurando um porta-retrato com a foto de uma moça muito
parecida com o manequim.
Marcos voltou ao
quarto e avisou que a ambulância estava vindo.
– Onde achou isso?
– ele me perguntou.
– Na mesinha
daquele canto. Deve ter sido a mulher dele. E este aqui deve ser ele, trinta
anos mais jovem.
– Esse manequim é
igualzinho à moça da foto! – disse Marcos, ao reparar na nossa descoberta.
– Ele ainda está
vivo? – perguntou César.
– Está, mas não sei
por quanto tempo.
– O que vamos
fazer? – quis saber Germano.
– Se ele parar de
respirar eu faço respiração boca-a-boca e você aperta o peito dele – eu disse,
com convicção. – Já vi isso nos filmes.
– Não, o que vamos
fazer com o manequim.
– Acha que devemos
tirar “a moça” daqui? – perguntei.
Marcos respondeu, logo:
– Se ela ficar aí,
o pessoal da ambulância vai estranhar. Vão pensar que ele é louco. E ele pode
ir para um hospício!
– Mas ele é
louco! Ele fala com manequins! – disse César.
– Mas é um louco
inofensivo. E deve se sentir muito sozinho – eu concluí. – Se ele sair dessa, não vai querer
viver num hospício sem ela... O manequim deve ser tudo o que ele tem.
Os meninos
perceberam a questão.
– Vamos esconder a
moça no armário – disse Germano, decidido.
Conseguimos espremer
o manequim dentro do roupeiro do quarto, tirando as pernas. Quando fechamos a
porta, ouvimos a sirene da ambulância. Eu desci e fui chamar a minha avó.
Contamos uma história mais ou menos verdadeira: que a bola havia caído na árvore,
eu fui pegar e vi seu Evaristo pela janela, deitado no chão.
Minha avó acreditou
e o pessoal da ambulância também. O médico disse que ele teve um derrame, mas
tinha chances de sobreviver.
Depois de uma
semana seu Evaristo voltou para casa. Estávamos em pânico. É claro que ele ia
descobrir o manequim no armário, sem as pernas. Será que ia pensar que foi
molecagem dos diabretes? E se ele decidisse contar para minha avó ou para as
outras mães, que espiávamos a casa dele? No mínimo, íamos ficar de castigo por
um mês!
Naquele dia nem
aparecemos no quintal.
Minha avó viu as
janelas do seu Evaristo abertas e quis levar uma torta para ele.
– Vamos até lá,
comigo. Ele vai gostar de saber que vocês ajudaram a salvá-lo – ela disse.
– Mas você nem fala com ele!
Eu estava
apavorado. Tentei sair fora, mas minha avó insistiu:
– Ele é reservado,
mas nestas circunstâncias vai nos receber. O que fizeram foi muito bonito. Ele
podia estar morto se vocês não tivessem entrado na casa e chamado o socorro.
Não tive saída.
Minha avó tocou a
campainha e eu fiquei ao lado dela, segurando a torta, com as pernas bambas.
Seu Evaristo nos
recebeu e nos mandou sentar. Agradeceu a torta e ouviu minha avó, orgulhosa,
contar toda a história de como evitamos que ele morresse.
Ele olhava para mim
de vez em quando, enquanto minha avó falava. Concordou com ela – que tínhamos
sido espertos – e se disse muito grato.
– Quando eu estiver
um pouco mais forte, quero agradecer a todos os garotos – ele falou, olhando
para mim.
Eu interpretei a
frase como uma ironia. “Agradecer” a todos os garotos... Devia estar odiando os
diabretes! Por termos descoberto o manequim – algo que ele queria tanto
esconder – e por arrancarmos as pernas dele e o enfiado no armário.
Ele ofereceu café,
mas minha avó achou que ele devia descansar. E se precisasse de algo era só
chamar. Ao sairmos, ele pôs a mão firme no meu ombro e eu gelei. Ele se abaixou
e sussurrou no meu ouvido:
– Obrigado por manter meu
segredo – e piscou.
Nesse dia da minha infância descobri que as aparências enganam...
Um comentário:
Ótimo! Sensível,lírico e redigido com mestria!
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