Foi Onório quem levantou a polêmica:
– Não era para o
prefeito ter voltado hoje?
– Acho que sim –
disse Edimir, cauteloso.
– O Siqueira esteve
mais cedo aqui no bar e me parece que há um zunzunzum lá na Câmara. Ele não disse
com todas as letras, mas essa demora do prefeito é sinal de problema – explicou
Onório.
– O Siqueira é da
oposição. Não se pode levar a ferro e fogo tudo o que diz.
– Ou o que não diz...
– Por outro lado, como
jornalista, é meu dever apurar qualquer fato que possa repercutir na nossa cidade.
– É para isso que a
Gazeta da Abadia conta com você há anos! – disse Onório.
No final da tarde o
zunzunzum tornou-se um zumbido mais sonoro. Cidades como Santa Abadia têm essa característica:
não há mistérios que durem mais de vinte e quatro horas. Há uma sutil e
eficiente rede de comunicação entre os moradores.
No dia seguinte a
manchete da Gazeta descortinava o zumbido, elevando-o à categoria de gritos:
“Prefeito Lázaro desaparece!”.
A cidade de solo
arenoso, como sempre, estremeceu.
A polícia e os civis
organizaram grupos de busca. Ante o abalo sísmico, o bar do Onório por tradição
tornou-se o epicentro de deliberações. Às quatro da tarde houve uma reunião
geral. Presentes os representantes da lei, vereadores, empresários expoentes e
a imprensa.
– O que temos até
aqui? – perguntou Edimir, que já rascunhava o editorial para o dia seguinte.
O delegado Pedro
Paulo se apressou:
– O prefeito viajou
há três dias para a cidade vizinha de Mosteiro Velho. Foi com seu próprio carro
para negociar a criação de uma feira regional de artes. Esteve em reuniões com
o alcaide de lá e ligou para a secretária avisando que estaria de volta ontem. Ele
não apareceu. O celular dele não responde. Mandamos e-mails e também não
tivemos retorno. Procuramos nos hospitais da região e nem sinal dele. Nas
buscas de hoje encontraram seu carro intacto numa estrada vicinal, abandonado.
No carro só havia uma mala. A perícia a recolheu para ser examinada.
– Está com cara de
sequestro
– disse Onório.
– Não tivemos
nenhum pedido de resgate – disse o delegado. – Mas ainda é cedo. Estamos
vasculhando toda a área e não há nenhuma pista.
– Se não houver
pedido de resgate, temos que pensar em outras opções – disse o Siqueira.
– Quais? – quis
saber Onório.
– Ele pode ter sido
morto – disse o delegado.
– Ou abduzido por alienígenas – disse o Nunes,
vereador da situação.
– Não vamos delirar
– ponderou Edimir. – São hipóteses muito improváveis. Temos que nos ater aos fatos.
A única coisa encontrada no carro dele foi a tal mala. Precisamos saber o que
ela contém. Pode haver indícios ali.
– O relatório deve
chegar a qualquer momento – disse Pedro
Paulo.
Passaram a discutir
as alternativas e os novos planos de busca. Todos falavam ao mesmo tempo, oscilando entre
preocupados e eufóricos. A torre de Babel se instalou. Não conseguiam traçar um
plano coerente e já estavam aos berros quando o celular do
delegado tocou.
– Estão enviando o
relatório da mala – disse Pedro Paulo,
em tom triunfal.
Fez-se um silencio
sepulcral.
– Encontraram alguma bomba ou um bilhete? –
perguntou Nunes, aflito.
– Não. Nada disso –
disse o delegado, enquanto lia a mensagem do celular. – É uma mala de couro e
tecido vermelho, com desenhos de padrões étnicos. No seu interior foram achados
uma nécessaire lilás, lingeries brancas bordadas, duas taças de cristal âmbar,
duas escovas de osso, pantufas atoalhadas com a letra “L” aplicadas e um estojo para colocar maquiagens de linho
floral.
– É uma mala de
mulher! – disse Onório.
– Não, meu caro, é
uma mala gay – disse Siqueira.
– Ele podia estar
com uma mulher no carro quando desapareceu – arriscou Nunes.
– Vocês sabem que
o Lázaro não é disso – retrucou Edimir.
– Não é mesmo. É daquilo... – disse
Siqueira.
– Seja com homem ou
mulher, uma mala dessas está mais para um encontro clandestino do que sequestro
ou abdução – disse Onório.
– Mas ele ainda
pode estar morto – arrematou Pedro Paulo.
– Não achamos
nenhum corpo – disse Edimir.
– Mas vão achar –
disse Siqueira. – É a opção mais viável. E se ele morreu precisamos de um novo
prefeito. Haverá muita agitação política por aqui...
A Babel recomeçou.
Estavam todos em pleno estardalhaço, quando uma caminhonete parou em frente a
estátua da praça central. Todos se viraram e viram uma figura envolta num
cobertor descer do banco do acompanhante e caminhar em direção ao bar.
– Morto, é? – disse
Nunes. – Então temos um Lázaro que voltou dos mortos!
– Não seria a
primeira vez... – disse Edimir.
Todos correram para
a porta do bar ao verem Lázaro se aproximar.
– Senhor prefeito! O
senhor está bem? – perguntou Edimir.
– O que houve? –
perguntou o delegado. – Não sabíamos mais o que pensar!
Nunes puxou uma
cadeira para Lázaro e ele começou falar:
– Quando voltava,
peguei uma estrada vicinal para tirar umas fotos do local em que pretendemos
levantar o pavilhão para a feira regional. O meu carro morreu e meu celular
estava sem bateria. Caminhei um bom trecho até que um sitiante passou de
charrete e me acolheu em seu sítio para pernoitar. Hoje tivemos que esperar sua
caminhonete voltar da cidade para que pudessem me trazer de volta.
– Ainda bem que foi
só isso – disse o delegado. – Estávamos pensando o pior.
– Agradeço a todos
pelo interesse e peço desculpas por deixá-los preocupados.
– E os seus
pertences? – perguntou Siqueira.
– Só levei uma
valise com uma muda de roupa. Deixei com o filho do sitiante como
agradecimento.
– Acho melhor levar
o prefeito em casa. Depois dessa aventura ele precisa descansar – disse o
delegado.
Todos se
entreolharam e ninguém falou sobre a mala.
Na manhã seguinte a
Gazeta de Abadia estampava na primeira página: “Lázaro ressuscitou!”. O
editorial narrava o infortúnio do prefeito, mas não mencionava em nenhuma linha
a tal mala.
O carro do prefeito
foi consertado. Lázaro ofereceu um jantar para a cúpula da cidade em
agradecimento às providencias tomadas. Estavam todos lá quando o mecânico
chegou com o sedan, novinho em folha.
Todos viram quando o
prefeito notou a falta de algo no veículo. Os olhares denunciavam cumplicidade.
– O quê? Vocês
pegaram a minha mala? – perguntou Lázaro.
– Mandamos para a
perícia – disse o delegado. – O carro só tinha as suas digitais. A mala era a única prova encontrada no veículo. Já está
sendo trazida.
– Mas não temos
nada a ver com a sua vida pessoal – esclareceu Onório.
– E ninguém está
aqui para julgá-lo – completou Siqueira.
Lázaro franziu
o cenho, mas antes que pudesse
responder, uma buzina soou. Era o prefeito de Mosteiro Velho. Doutor Liberato.
O homem ruivo, alto e forte entrou pelo jardim da casa parecendo uma divindade
nórdica:
– Soube o que houve
e vim ver se você está bem, Lázaro!
– Estou bem,
obrigado! Junte-se a nós para o jantar!
– Com prazer –
disse Liberato.
O fortão era
vistoso e estava preocupado com o prefeito a ponto de ir vê-lo pessoalmente. Todos se entreolharam.
Ninguém disse nada, embora Lázaro tivesse lido suas mentes.
No meio do jantar,
Liberato falou:
– Com tudo o que
houve você não deve ter tido tempo de ir à Câmara, não é?
– É verdade –
assentiu Lázaro. – Senhores, o doutor Liberato gentilmente nos enviou alguns trabalhos
artesanais para serem aprovados para a exposição da nossa feira regional.
– E onde estão? –
perguntou Siqueira.
Lázaro deu um
sorrisinho irônico:
– Estão todos na mala, é claro!
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