14 de abr. de 2012

Solidão



O professor Hilário entrou na sua classe do primeiro ano de filosofia e escreveu no quadro com uma caneta azul a palavra solidão.
Virou-se para os alunos, arregaçou as mangas e disse:
– Hoje vamos falar sobre o sentimento que mais de perto nos acompanha. Que está alojado nas camadas mais profundas da nossa alma. Que nos persegue por todas as fases da vida. A solidão.

Hilário olhou pelas fileiras e viu alguns olhos se arregalarem:
– Alguém quer fazer uma consideração? 
– Professor, isso parece coisa de romance antigo – disse Tadeu, um aluno do fundo da sala. – Solidão? No mundo de hoje, com toda essa tecnologia, só fica sozinho quem quer. Solidão é uma opção e não um determinismo. Podemos escapar dela. Não entendo como pode afirmar que é o sentimento mais presente em nossa vida...
O professor se sentou na beirada da mesa e respondeu:
– As pessoas passam boa parte da vida, consciente ou inconscientemente, procurando ser amadas, queridas. Ninguém quer estar só. Ninguém gosta de se sentir só. Buscamos a amizade e o amor. Queremos conhecer amigos que compartilhem interesses e sentimentos e fora a família, procuramos uma alma gêmea ou não tão gêmea assim, que nos permita vivenciar o amor... Pessoas bem intencionadas também passam boa parte da vida procurando ajudar os outros, seja com palavras, ações ou ao menos estando lá, presentes e genuinamente interessadas a apoiar os que precisam em seus momentos críticos.
–  E o que tem isso a ver com solidão? – perguntou Tadeu.
       – Já chego lá – disse Hilário, e continuou. –  Depois de um certo tempo, percebemos que a maior parte dessa jornada talvez tenha sido em vão. Um desperdício de tempo, energia, de esforços. Isso se revela quando descobrimos que aqueles que julgamos amigos, na verdade não o são. Que os amores que esperávamos encontrar com A ou com B não vingaram, ou sequer existiram. Que as pessoas que nos empenhamos em ajudar na verdade não querem ser ajudadas. Que a despeito de milhões de habitantes no mundo não há por aí afora quase ninguém para chamarmos de amigo ou de amor. As relações muitas vezes são falsas, levianas, sem solidez. Dão a ilusão de que temos alguém. Alguém para ser feliz. Alguém com quem contar. Mas seguimos pela vida e volta e meia nos deparamos com a realidade: estamos quase todo o tempo em solidão. E o mais impactante: nos momentos mais críticos da nossa existência, boa parte das vezes, apesar dos nossos esforços para cultivar amores e amizades, estamos e estaremos com-ple-ta-men-te sozinhos. E quanto a isso, meu caro, não há nada que a tecnologia possa fazer.
– Mas as pessoas estão tão interligadas, tão conectadas, que eu não vejo como podem sentir solidão – retrucou Tadeu. – Mesmo os que não tem parentes, podem frequentar lugares, fazer cursos, ir para a internet, estudar, viajar, se enturmar. Sempre haverá alguém. Ter solidão hoje em dia parece algo anacrônico.
– Você está vendo a questão nas suas camadas mais superficiais, Tadeu. E por um ângulo bem apertado. Talvez a solidão seja nosso estado natural, só que não gostamos dele – disse Hilário. 
– Não entendi – disse Tadeu.
– Uma das hipóteses é a de que a solidão nos torna infelizes por causa de seu pai: o medo.
– A solidão é filha do medo?  –  voltou Tadeu.
– Uma filha bastarda, talvez – respondeu  Hilário. – Veja bem, temos que passar um tempo por aqui e como a jornada é árdua, nos iludimos na tentativa de ludibriar a solidão que nos assola. Imaginamos que se encontrarmos amizade e amor tudo se transformará e as partes indesejáveis de nossas vidas irão evaporar ou se tornarem ao menos mais suaves. Pensamos também, que se agirmos corretamente nesse período breve de existência, teremos um suporte quando precisarmos e o fardo nos será mais leve do que se tivéssemos que atravessar pelo labirinto da vida sozinhos. Pensamos dessa forma mesmo quando agimos desinteressadamente. É algo que está no nosso subconsciente. Todos queremos um Cirineu para ajudar a carregar nossa cruz. A cruz de existir. Não gostamos de estar sós, talvez por medo. Esperamos ter alguém ao nosso lado que nos dê força. Que seja solidário. Que nos apoie. Queremos afastar a solidão na vã expectativa de nos sentirmos mais fortes ante as adversidades. E acreditamos que se formos honestos em nossos sentimentos, se nos preocuparmos com os semelhantes, ou ao menos com os mais próximos, teremos alguma espécie de recompensa imponderável. Um lenitivo para as futuras dores. Não em outra vida, nesta aqui mesmo. É como dizer: eu me importo, eu ajudo, quando eu precisar, serei ajudado. Não estarei sozinho. Mas a solidão é uma rainha poderosa e praticamente invencível. Em seus exércitos ela alista soldados de elite: a ingratidão, o egoísmo, o desinteresse dos homens pelo próximo, o destino que nos dificulta encontrar as pessoas certas. Com um exército desses quem pode, não é?
Alguns alunos balançaram a cabeça e se entreolharam com aquele ar de “já aconteceu comigo”...  Uma aluna da terceira fila tinha os olhos marejados.
Já aconteceu com ela, pensou Hilário.
– Então só não sente solidão quem não tem medo? Quem se acha capaz de enfrentar a vida sozinho?  –  perguntou Tadeu.
– Como disse, essa é uma das hipóteses. Existem outras e esse tema é uma caixa de Pandora. Não sabemos tudo o que irá sair de lá de dentro. Eu só puxei um fio. Agora todos irão discutir em grupos estes textos que estou entregando a vocês. Tirem suas próprias conclusões. Depois iremos debater. Só vou adiantar uma coisa: se não entenderem porque a solidão nos persegue e porque nos sentimos infelizes com ela, é compreensível. Vamos trabalhar nisso, sem pressa. Mas posso lhes dizer que existe um lado positivo nesse sentimento. A solidão nos faz sentir mais fortes.
– Como assim? – perguntou Tadeu.
– A cada prova na vida que passamos sozinhos, percebemos que não somos tão fracos como pensamos. Poucos são – graças a Deus – os que sucumbem ao suicídio. Sofremos sim, nos sentimos absolutamente sós, devastados, mas continuamos vivendo. Passados os momentos críticos, a solidão nos dá a certeza de sermos mais fortes do que imaginamos. Aí está um ponto de partida para vocês discutirem. Já pensaram nisso? “Somos infelizes, mas somos fortes!”

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