O professor Hilário
entrou na sua classe do primeiro ano de filosofia e escreveu no quadro com uma
caneta azul a palavra solidão.
Virou-se para os
alunos, arregaçou as mangas e disse:
– Hoje vamos falar
sobre o sentimento que mais de perto nos acompanha. Que está alojado nas
camadas mais profundas da nossa alma. Que nos persegue por todas as fases da
vida. A solidão.
Hilário olhou pelas
fileiras e viu alguns olhos se arregalarem:
– Alguém quer fazer
uma consideração?
– Professor, isso
parece coisa de romance antigo – disse Tadeu, um aluno do fundo da sala. –
Solidão? No mundo de hoje, com toda essa tecnologia, só fica sozinho quem quer.
Solidão é uma opção e não um determinismo. Podemos escapar dela. Não entendo
como pode afirmar que é o sentimento mais presente em nossa vida...
O professor se sentou
na beirada da mesa e respondeu:
– As pessoas passam
boa parte da vida, consciente ou inconscientemente, procurando ser amadas,
queridas. Ninguém quer estar só. Ninguém gosta de se sentir só. Buscamos a
amizade e o amor. Queremos conhecer amigos que compartilhem interesses e
sentimentos e fora a família, procuramos uma alma gêmea ou não tão gêmea assim, que nos permita
vivenciar o amor... Pessoas bem intencionadas também passam boa parte da vida
procurando ajudar os outros, seja com palavras, ações ou ao menos estando lá,
presentes e genuinamente interessadas a apoiar os que precisam em seus momentos
críticos.
– E o que tem
isso a ver com solidão? – perguntou Tadeu.
– Já chego lá –
disse Hilário, e continuou. – Depois de um certo tempo, percebemos que a
maior parte dessa jornada talvez tenha sido em vão. Um desperdício de tempo,
energia, de esforços. Isso se revela quando descobrimos que aqueles que
julgamos amigos, na verdade não o são. Que os amores que esperávamos encontrar
com A ou com B não vingaram, ou sequer existiram. Que as pessoas que nos
empenhamos em ajudar na verdade não querem ser ajudadas. Que a despeito de
milhões de habitantes no mundo não há por aí afora quase ninguém para chamarmos
de amigo ou de amor. As relações muitas vezes são falsas, levianas, sem
solidez. Dão a ilusão de que temos alguém. Alguém para ser feliz.
Alguém com quem contar. Mas seguimos pela vida e volta e meia nos deparamos com
a realidade: estamos quase todo o tempo em solidão. E o mais impactante: nos
momentos mais críticos da nossa existência, boa parte das vezes, apesar dos
nossos esforços para cultivar amores e amizades, estamos e estaremos
com-ple-ta-men-te sozinhos. E quanto a isso, meu caro, não há nada que a
tecnologia possa fazer.
– Mas as pessoas estão
tão interligadas, tão conectadas, que eu não vejo como podem sentir
solidão – retrucou Tadeu. – Mesmo os que não tem parentes, podem
frequentar lugares, fazer cursos, ir para a internet, estudar, viajar, se
enturmar. Sempre haverá alguém. Ter solidão hoje em dia parece algo anacrônico.
– Você está vendo a
questão nas suas camadas mais superficiais, Tadeu. E por um ângulo bem
apertado. Talvez a solidão seja nosso estado natural, só que não gostamos dele – disse Hilário.
– Não entendi –
disse Tadeu.
– Uma das
hipóteses é a de que a solidão nos torna infelizes por causa de seu pai: o
medo.
– A solidão é
filha do medo? – voltou
Tadeu.
– Uma filha bastarda,
talvez – respondeu Hilário. – Veja
bem, temos que passar um tempo por aqui e como a jornada é árdua, nos iludimos
na tentativa de ludibriar a solidão que nos assola. Imaginamos que se
encontrarmos amizade e amor tudo se transformará e as partes indesejáveis de
nossas vidas irão evaporar ou se tornarem ao menos mais suaves. Pensamos
também, que se agirmos corretamente nesse período breve de existência, teremos
um suporte quando precisarmos e o fardo nos será mais leve do que se tivéssemos
que atravessar pelo labirinto da vida sozinhos. Pensamos dessa forma mesmo
quando agimos desinteressadamente. É algo que está no nosso subconsciente.
Todos queremos um Cirineu para ajudar a carregar nossa cruz. A cruz de existir.
Não gostamos de estar sós, talvez por medo. Esperamos ter alguém ao nosso lado
que nos dê força. Que seja solidário. Que nos apoie. Queremos afastar a solidão
na vã expectativa de nos sentirmos mais fortes ante as adversidades. E
acreditamos que se formos honestos em nossos sentimentos, se nos preocuparmos
com os semelhantes, ou ao menos com os mais próximos, teremos alguma espécie de
recompensa imponderável. Um lenitivo para as futuras dores. Não em outra vida,
nesta aqui mesmo. É como dizer: eu me importo, eu ajudo, quando eu precisar,
serei ajudado. Não estarei sozinho. Mas a solidão é uma rainha poderosa e
praticamente invencível. Em seus exércitos ela alista soldados de elite: a
ingratidão, o egoísmo, o desinteresse dos homens pelo próximo, o destino que
nos dificulta encontrar as pessoas certas. Com um exército desses quem pode,
não é?
Alguns alunos
balançaram a cabeça e se entreolharam com aquele ar de “já aconteceu comigo”...
Uma aluna da terceira fila tinha os olhos marejados.
Já aconteceu com ela, pensou Hilário.
– Então só não sente
solidão quem não tem medo? Quem se acha capaz de enfrentar a vida
sozinho? – perguntou
Tadeu.
– Como disse, essa é
uma das hipóteses. Existem outras e esse tema é uma caixa de
Pandora. Não sabemos tudo o que irá sair de lá de dentro. Eu só puxei
um fio. Agora todos irão discutir em grupos estes textos que estou entregando a vocês.
Tirem suas próprias conclusões. Depois iremos debater. Só vou adiantar uma
coisa: se não entenderem porque a solidão nos persegue e porque nos sentimos
infelizes com ela, é compreensível. Vamos trabalhar nisso, sem pressa. Mas
posso lhes dizer que existe um lado positivo nesse sentimento. A solidão nos
faz sentir mais fortes.
– Como assim? –
perguntou Tadeu.
– A cada prova na vida
que passamos sozinhos, percebemos que não somos tão fracos como pensamos.
Poucos são – graças a Deus – os que sucumbem ao suicídio. Sofremos sim, nos
sentimos absolutamente sós, devastados, mas continuamos vivendo. Passados os
momentos críticos, a solidão nos dá a certeza de sermos mais fortes do que
imaginamos. Aí está um ponto de partida para vocês discutirem. Já pensaram
nisso? “Somos infelizes, mas somos fortes!”
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